domingo, 23 de março de 2008

Minhas memórias sobre Dona Orávia Alves Ferreira


O feitio do presente documento me fora pedido pela historiadora do Arquivo Público da Cidade de Ribeirão Preto, Tânia Registro. Ela, afetuosamente e atenciosamente abraçou meu pedido de perpetuação da memória de Dona Orávia Alves Ferreira junto ao Arquivo, pela entrega que se dará dos documentos pessoais que pude guardar da eminente educadora cultural desta cidade.
Os documentos me foram confiados pelo sobrinho Márcio, que residia até aquele momento, no ano de 1994, em São Paulo. Márcio é arquiteto, filho de Altair, uma das irmãs adotivas de Dona Orávia, esposo de Marisa, pai de Fernanda. Altair residia neste mesmo tempo em Franca. O sobrenome Blundi poderá servir como auxiliar para eventuais pesquisas. A outra irmã, Mirtes, vivia em São Paulo e trabalhou com Dona Orávia no Conservatório Dramático e Musical Carlos Gomes desta cidade.
Este escrito é minúscula parte daquilo que eu poderia escrever sobre a “mãe”, mestra e amiga Dona Orávia. Este documento descarta à priori qualquer intenção literária que pudesse torná-lo elegante ou na pior das hipóteses, maneirista. Incorrer-me-ia em erro se primasse pela linguagem acadêmica ao invés da afetiva. O cunho pessoal deste está diretamente ligado à Psique enquanto vocábulo de alma, transcendência.
Foi na ETARP – Escola Técnica de Artes de Ribeirão Preto - ano de 1985 em meados de fevereiro, que conheci Dona Orávia, por intermédio de minha mãe - Irma Delsin Guimarães - que trabalhava com venda de salgados. A escola era situada na Rua Florêncio de Abreu, sendo este imóvel, vizinho àquele que faz esquina com a Rua Barão do Amazonas. A casa fora demolida. Hoje, encontra-se ali um estacionamento de carros. Neste lugar, eu tomei as minhas primeiras lições de piano com Marise Taconelli, prima de Dona Orávia. Após poucos meses sob os cuidados de Marise, Dona Orávia se tornaria minha mestra. Neste ano de 1985 a ETARP fecharia para sempre suas portas. Dali, rumei enquanto aluno para a casa de Dona Orávia, na Rua Cerqueira César nº 155. Ali, eu aprenderia muito mais que tocar piano.
O lar de Dona Orávia era então constituído por ela e seu pai, o Sr Alcides Alves Ferreira, ferroviário aposentado e fundador da primeira estação de rádio desta cidade. Junto a eles, viveu uma “prole” de bichinhos, tratados como filhos.
O convívio com ambos era diário. Apenas nos finais de semana, nós - os alunos que não possuíam um piano – podíamos nos ausentar dos cuidados da mestra. O esmero com que Dona Orávia tratava seus pupilos era muito mais que os cuidados de um profissional exercendo sua tarefa. As aulas eram diárias, sem o menor descuido por parte da mestra. O horário do estudo “solitário” ao piano era logo interrompido pela mestra que cuidava de perto de nossa formação pianística. A doação era enorme por parte de Dona Orávia. E, na sala principal da casa, vigiava por nós o Sr Alcides nas suas intermináveis leituras de livretos de faroeste. Ele pausava sua leitura de quando passávamos pela sala com um gentilíssimo sorriso e, após duas palavras, ficávamos fascinados pelo diálogo que ele sempre estabelecia. Havia uma gentil “briguinha” entre o Papai e “Iaínha”. Era a forma de tratamento com a qual se chamavam. A briguinha era o resultado da vigilância da mestra que, daquele modo, chamava a atenção do aluno e do papai para que o piano voltasse a cantar!
Jamais conheci um aluno de Dona Orávia que não tocasse bem. Ela trazia para o aprendizado dos alunos, muitas outras informações e idéias que não “diretamente” estariam relacionadas ao instrumento. Justamente esta postura, fazia com que seus alunos pudessem deste modo, ampliar seus horizontes. A mestra tinha uma paciência enorme, porém, foram muitos àqueles que a julgaram precipitadamente pela veemência de seus gestos, muitas vezes enfáticos ao ensinar algo sobre técnica pianística. Uma maioria bastante desinformada chamava a isto de estupidez. Compreendi logo, que as atitudes veementes da mestra ao nos ensinar algo que o nosso corpo (gestos) insistia em fazer errado, serviam tanto para a correção na via do tato, bem como para que guardássemos as advertências, posto que uma aula de instrumento requeira muito do processo mental, e que, o corpo, não deve insistir descuidadamente no erro, para que ele não fique frisado. Aqui se explica a atitude sempre enérgica da mestra e sua real função: fazer com que aprendêssemos aquilo que é mais natural perante a técnica. Dona Orávia sentia o pulso íntimo de seus alunos, e, sabia muito bem compreender os porquês da lição não ter saído bem. Ela nos convidava sempre a vislumbrar o mundo das idéias artísticas, os pluralismos, as singularidades. Tocar piano não era apenas tocar piano. A busca da sonoridade nobre, elegante, aveludada, cantada, cristalina, era um laboratório sem fim! Ai de quem baixasse teclas sem alguma intenção! Mesmo que ela estivesse em outro aposento de sua residência, ao ouvir uma sonoridade ruim, uma impropriedade, ela calmamente abria a porta da sala de música, erguia as finas sobrancelhas e dizia: vamos ver o que está acontecendo! Se o erro era apenas uma repetição descuidada, ela cantava ou soletrava as notas ao longe. Muitas vezes ela estava à cozinha também, enquanto nos corrigia, preparando algum lanche para todos. Uma mãe! É preciso acrescentar aqui algumas palavras a respeito justamente da relação mãe-aluno (filho adotivo): Quando Dona Orávia realmente se importava com alguém, as “brigas” seriam inevitáveis.
Apesar de ter sido ampla divulgadora da cultura musical pianística, Dona Orávia não se encaixaria jamais naquilo que seu Prof. Mário de Andrade denominou de Era da “pianolatria” brasileira, pois, este, era um termo jocoso e pejorativo para os aficionados no instrumento. Este termo designava “pianeiros” desavisados, que cabalmente pouco se importavam em compreender estéticas, interação entre as artes e história.
Dona Orávia nasceu aos 13 de Fevereiro de 1924, no município de Araraquara, sendo seus pais Alcides Alves Ferreira e Angelina Blundi Ferreira. A mestra veio a falecer no ano de 1994, domingo de Páscoa.
Fica aqui uma observação: Coloco-me ao dispor de futuros pesquisadores que venham a trabalhar sobre a memória de Dona Orávia caso estes precisem de relatos sobre o triste dia de sua morte. Eu não o relatarei aqui. Seria impropriedade enquanto parte deste texto, bem como, hoje, domingo de Páscoa de 2008, me é muito dolorosa a lembrança.
Durante os anos de 1989 e 1990, estive ausente do lar de Dona Orávia. Havíamos brigado. Eu, um adolescente naquela época, não estava pronto para lidar com algumas situações. No ano de 1989 eu ingressei na Escola Técnica de Artes Carlos Gomes, seguindo as orientações de Dona Orávia. O fato de eu ter que saber conciliar duas professoras de piano era motivo de confusão afetiva e mental para mim. Nesta época eu já tinha os meus intentos particulares para estudar algo relacionado às Belas Artes, mas, isto era de certa forma, minado pela mestra e meus pais. Não era nenhum conluio, fique claro. Mas a resistência dos mesmos também reforçou minha atitude naquela época, para o rompimento com a mestra.
O ano de 1991 marcou nosso reencontro. Seríamos amigos ainda muito mais íntimos, e, o afeto renovado pela saudade que ficara para trás, traria um novo sentimento de zelo para nós. O Sr Alcides havia falecido, e recordo-me, ainda que tristemente, que o sabor da felicidade havia voltado para nossos dias. O momento do perdão da querida mestra foi um abraço em lágrimas. Nenhuma palavra houve, senão àquele olhar amoroso e grandioso. Em pouquíssimos segundos, eu pude reaver nos olhos de Dona Orávia o grande amor e felicidade pelo momento do reencontro, ainda que o evento fosse repleto de transtornos para ela que estava inconsolável. O pai era o seu Alter, seu grande e querido amigo.
Eu jamais pude me considerar “não aluno” de Dona Orávia no tempo da separação. Mesmo que eu quisesse, era uma discrepância. Se a separação se deu, foi pelas conjecturas da vida, não, porém, por algum desafeto. Ainda que nos encontrássemos magoados um com o outro naqueles momentos...
Tudo o que de mais importante desejo relatar aqui, diz respeito à figura tão marcante da personalidade de Dona Orávia. Eva Wilma e Paulo Autran eram amigos muito queridos. Autran trocava com Dona Orávia os truques daquilo que estavam bordando. Eva Wilma, dileta amiga, certamente poderá algum dia colaborar com as fontes de dados que fizeram delas grandes amigas.
A pianista Yara Bernette (1920-2002) foi a grande mestra de Dona Orávia, bem como a pianista carioca Gloria Maria da Fonseca era também das mais queridas amigas pessoais, com quem Dona Orávia trocava muitas informações sobre assuntos didáticos. Gloria foi assistente de Jacques Klein, um dos mais queridos amigos da mestra.
Dona Orávia certamente representará sempre para esta cidade, um marco sobre o papel abrangente da mulher. A artista sofreu duras reprimendas “sociais” pelo motivo de ter se divorciado de um marido que transformou sua vida em um abismo de problemas. Somando-se a isto o fato de ela ter sido grande pioneira das Artes como o balé, teatro, sem mencionarmos a grandiosidade dos músicos de carreira internacional que para cá ela trazia, todos estes fatores tiveram a paga de um ônus injusto e improcedente. A mulher visionária trazia na mente e no coração, a vontade do mais, do belo, da vida cultural prospera e freqüente.
A mestra nunca deixou de ter nas mãos livros e mais livros. Devorava-os de forma assustadora. O seu simples criado mudo sempre sustentava uma pequena pilha trazida da livraria Acadêmica. A ânsia pela leitura, certamente, falará com muita propriedade dos porquês de Dona Orávia estar sempre além e separada dos estabelecimentos de música desta cidade. Eles primavam então pelo agrado do aluno-cliente, e não pela arte. A arte não lida com tais conveniências comerciais, apesar de ela ser um produto vendável. E, por nunca ter encontrado neste jogo comercial, algum sinônimo de boa ventura, Dona Orávia despiu-se lentamente destes estabelecimentos comerciais. As exceções sempre acontecem, mas, grosso modo, ela não se prestaria jamais a estar limitada aos gostos pessoais de um aluno desavisado, quiçá de alguma entidade que primasse por tais princípios.
Findo este documento com um sentimento de gratidão eterno pela mestra. Acredito que a memória de Dona Orávia estará salvaguardada junto ao Arquivo Público da Cidade de Ribeirão Preto. Tomara que possa ser ela, sempre lembrada como baluarte da história esta cidade.
O Sr Divo Marino - escritor e artista plástico -, amigo particular de Dona Orávia, muito me encorajou com suas palavras ao telefone, ao que disse: - A Orávia ensinou muito a nós, homens de seu tempo, ela nos ensinou a fazer algo além do político, ela nos ensinou a sermos homens sociais!
Menciono igualmente aqui a minha sincera felicidade por ter encontrado na pessoa da historiadora Tânia Registro, o acato decisivo e muito amável para a perpetuação do trabalho de Dona Orávia. Preciso mencionar que Tânia foi desde início, gentilíssima, e, mais que isto, eu pude sentir que ela estava afetivamente ligada a este trabalho.
Pelo presente documento, declaro ser o doador de materiais referentes à memória de Dona Orávia Alves Ferreira. Este material consta de fotos (pessoais, históricas), livros com recortes de jornais, programas de concertos, placas de prata em homenagem a pianista, bem como uma medalha de prata e ouro recebida em 1975 pela Prefeitura desta cidade, alguns objetos pessoais (acessórios de vestuário), CDs contendo scanners de todos os documentos doados, gravados no formato TIFF e JPG, bem como, uma pré-organização destes documentos em subpastas dispostas nos CDs.

Atenciosamente,
Alexandre Tadeu Delsin Guimarães

Ribeirão Preto, 23 de Março de 2008 - Domingo de Páscoa.

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